3 de maio de 2020

emergência, 14



acordei cedo
apalpei o dia à janela
e não vi novidades na tepidez da manhã.
o fim do estado de emergência
não trouxe pássaros novos
nem devolveu os conhecidos.
desconhecidos cumprimentam-se na rua,
entram-nos pássaros nos quartos de dormir;
aves livres cumprimentam-nos como vizinhos,
há nas casas uma falta sensível de pessoas conhecidas.
todo o medo que tenho
mostrou-mo béla tarr no tango de satanás:
o doutor confunde o toque a finados com sinos celestiais
e finalmente entaipa a janela, como se
o mundo pudesse ser deixado do lado de fora da vida:
resta-lhe escrever às escuras.
a distância social não nasceu da emergência,
vivia entre nós há mais tempo
do que alcança o braço das memórias juvenis –
como um cão enorme
de uma raça perigosa
criado no salão da casa
a beber limonada
e a roer as pernas dos móveis
com tanto afinco como o bicho da madeira
e o estatuto das carpideiras pagas para chorar por nós.

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3 de Maio de 2020, primeiro dia depois do estado de emergência

(imagem da exposição Pequenos Artistas à Descoberta do Museu, organização Jardim Infantil Nossa Senhora da Piedade e Museu de Évora, Maio de 2011)

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