26 de junho de 2025

[há imensos lugares da Terra]


 



há imensos lugares da Terra

onde já não podemos voltar


as linhas férreas continuam lá

e os vagões sobre elas deslizando

cumprindo ou não os horários primitivos;

as águas dos mares oceanos

ainda não se evaporaram completamente

e nem todos os navios naufragaram;

nos céus entre mísseis ainda há ar

e nos aeroportos restam fronteiras

onde os afortunados podem atravessar – 

persiste, pois, a possibilidade teórica da viagem


mas nenhum transporte é tão poderoso

que possa levar um humano a um vulcão de vazio

e a Terra é hoje uma crosta de chamas:

onde antes vivemos vidas diversas

onde longe da casa materna encontrámos habitação

de onde trouxemos oxigénio e pão

hoje só existe distância mudez e solidão

onde já não podemos voltar

agora que todos os caminhos foram tomados

pelos bárbaros aquartelados nas nossas mentes


há imensos lugares da Terra

onde estamos todos a morrer e nem sabemos


25 de junho de 2025


26 de abril de 2025

Os sapatos pretos de Francisco






Os teus sapatos pretos, gastos

mas limpos,

cozidos pelo sapateiro argentino,

porque toda a pessoa vem de algum lado,

os sapatos pretos que escolheste

para a última das caminhadas

tantas onde te gastaste,

limpo, permanecendo limpo,

não condenavam os sapatos vermelhos

da tradição tradicional,

não desprezavam o símbolo habitual

(foste parco em desprezos),

simplesmente inauguravam novo símbolo

o símbolo 

de que vale a pena gastar a vida a viver

vale a pena gastar os sapatos a percorrer

os caminhos insondáveis dos outros,

vale a pena sujar os sapatos na terra

onde chegam os que fogem do inominável

sem exércitos que os defendam

e permanecer limpo

vale a pena sujar as mãos a lavar dores 

e permanecer limpo

vale a pena erguer a voz contra a guerra 

e permanecer limpo

vale a pena cuidar em lugar de julgar

e permanecer limpo

vale a pena expulsar vendilhões do templo

e permanecer limpo

gasto mas limpo 

limpo porque gasto

como os sapatos

pretos das caminhadas

limpos agora das dores terrenas

falando tão alto os gestos

como as palavras.

Os teus sapatos pretos, gastos

mas limpos, 

falam, Francisco.



(26 de Abril 2025, dia em que o Papa Francisco foi tumulado levando os seus sapatos pretos habituais)

27 de maio de 2024

POESIA CONCRETA



 

Apaga a luz

o guarda pões às escuras

Bate nas latas

baralhas as escutas

Sopra na poeira

misturas as pistas

Ri ao desbarato

confundes os tristes

Diz publicamente o que tens a dizer

Ouve atenta a contraproposta

Volta a pensar

Volta a dizer

Viaja nas razões de costa a costa

Volta a escutar

Podes negociar no recato

Pesa com cuidado o que há a fazer

Não temas ponderar o impacto

Vai e volta

Vai e talvez revolta

Vai de companhia

quando não de batalhão

Não vás sozinha

nem em dias de solidão

Suja as mãos

não a convicção

Erra

Erra

Erra

Enterra a semente

A semente berra

mais alto do que todos os frutos maduros 

                                    da árvore da cautela.


(A imagem foi gerada por pedido a um programa de Inteligência Artificial.)

18 de março de 2024

(Para o Nuno Júdice)


 

Não podemos neste dia

escolher uma das tuas palavras,

um exemplar único dos teus poemas.

Seria dolorosamente curto,

exercício excessivo de razão deslocada.

Uma violência como preferir pai ou mãe.

Olhando-te, hoje, inteiro,

há uma expectativa na tua morte:

que venha a revelar-se a fonte bravia

dessa inteligência de ver o mundo

sem desfazer o mistério e a urgência 

de amar desmesuradamente

o que sobe o rio na margem oposta.

Que fique a trabalhar a terra o teu segredo.


(18-03-2024)

27 de julho de 2023

(Ao Eduardo Pitta, 09.08.1949-25.07.2023)

 




Jaz um poeta vertical entre nós.

Repousa, afinal, em posição horizontal.

Um rapaz a arder

na sala dos espelhos

cegos

onde nos vemos.

Jaz um poeta entre nós. Calado,

ouvimos as tuas palavras.

Como quem escuta através da porta

entreaberta entre duas salas

continuam a falar-nos as tuas palavras.



3 de outubro de 2021

Iolanta, em Tchaikovski

 

O rei não autoriza que saibas da cegueira.

Da tua cegueira.

Organiza o reino, o mundo, a corte,

o discurso vigiado da aurora ao ocaso,

a casa como um teatro

para que não saibas que os olhos

não servem só para chorar.

Que não te falem da luz, nem da beleza,

nem de um je ne sais quoi cuja falta pressentes.

Que os olhos sós não vêem,

como as máquinas fotográficas não vêem.  

Da diferença

entre uma rosa branca e uma vermelha,

que escapa

à polpa dos dedos.

De como se pode saber que alguém chora

sem tocar as lágrimas nos seus olhos.

(Nunca esqueças

que quase tudo na civilização é indirecto.)

Iolanta: teu pai, René de Provença

não te protege da tua cegueira:

protege o rei do feroz esplendor

de no mundo conviver com a dor.

Protege do mundo o protector,

a versão romanesca da falsa consciência de classe.

10 de setembro de 2021

Sobressalto

 


 

(Para Jorge Sampaio)

 

Depois de uma manhã quebrada da friura

E de um fugaz pináculo do dia

Cai agora a tarde sereníssima

O silêncio das árvores calou os pássaros

A imensidão da noite amansou o mar

E uma súbita solidão

Acrescentada às dores do mundo

Reclama um sobressalto

Inadiável sem remorso.

Camarada, seguimos-te nisso:

O fastio do quotidiano não nos adormecerá.

 

10 de Setembro de 2021

 

10 de janeiro de 2021

História completa do momento presente

 



A guerra aquece, a guerra arrefece
e os corpos esgaçam,
abrem fendas a princípio finas
depois abismos;
a variação térmica extrai dos corpos
experiência
como sumo de um fruto esmagado nas mãos,
decanta a dor como uma essência perfumada.
Já não há natureza
nada é hoje como era para ser
tudo é história:
as minúsculas indecisões de um momento
as escolhas mínimas
os gestos em miniatura de todos e ninguém
elevam-se como catedrais centenárias
na paisagem de cada dia.
Os pequenos olvidos desenham o edifício do mundo.
 

 

10 de janeiro de 2021

7 de janeiro de 2021

Decameron

 


Uma e outra vez, a natureza

dentes afiados cravados no nosso cachaço

arranca da habitação

expulsa da cidade e da assembleia

entrega à floresta densa, nebulosa e violenta

legiões de corpos doados ao medo, à disputa, à incerteza

gente abandonada ao vento inclemente 

do deus omnipotente instinto de sobrevivência

onde garras aguçadas são veludo, luvas de baile

mandado. Passados todos estes séculos,

regressamos:

a Florença de que saímos vagueia expatriada,

não tomamos já doses certas diárias de estórias

e, contudo, dez dias de afastamento e delírio

ainda satisfazem o alto conceito de retiro

orquestrado para arrancar lobos ao convívio dos lobos.

A comédia humana não conhece os dantescos degraus

entre o inferno, o purgatório e o céu,

as personagens são inteiramente terrenas

e térreas todas as suas moradas:

como um caminho ignoto na floresta

a peste apaga a ordem e a desordem

sem leis só existe a força

e a diferença na força

e a lei da força,

a fraca figura de uma espada de madeira

quando as de aço ferem:

a fome é tão contagiosa como a peste,

nenhuma se cura com castidade

nem se distrai com a alegria.

Decameron, 

dez dias para um tempo de encruzilhadas 

onde os caminhos se separam

precisamente nos lugares

onde antes se juntaram.


(Janeiro de 2021)


16 de novembro de 2020

o mistério do nada, 2

 

quem no mistério do nada só vê lava

e os arbustos da ilha em frente,

sem os séculos crescidos sobre o medo,

sem o espanto, as interpretações originais

e as derivadas, as obras literárias e a teologia,

as migrações, as peregrinações e os dias andados

antes de todas as viagens se tornarem excursões,

quem no mistério do nada só vê

o que se vê, dirá

que os mistérios do nada não existem.

Ou são somente um capítulo da física do vácuo.

 

 

(Ilha do Pico, Agosto de 2015)