21 de março de 2019

Ninguém dorme debaixo da metafísica.



(“Ninguém dorme debaixo da semiótica”, disse Souto de Moura em Paraty.)



Ninguém dorme debaixo da metafísica.
E entretanto é preciso construir,
Construir casas, escolas, hospitais.
Tectos sólidos e abrigos contra o nuclear.
Abrigos, também, contra o acessório e o supérfluo
E contra a insidiosa facilidade de tudo explicar.
Ninguém se abriga da chuva debaixo da semiótica,
Nem do sol escaldante ela nos protege,
E faltam mesas para almoçar. Alguém inventa a pergunta patriótica:
Quem nos desenha essas mesas?
E até almoços nessas mesas. Ou pão pelo menos,
Ou o diabo para o amassar.
Faltam caminhos mais curtos
(não há consolo de não cabermos na nossa terra)
Para quem parte para o Abu Dhabi,
Que é como quem diz para parte incerta,
Como os dias: uma parte um pouco deserta,
Estar hoje aqui e amanhã ali,
E hoje e amanhã serem estados tão próximos da mesma alma.
Falta um recuo para quem escolhe caminhos fora da sombra,
Falta a sombra ou sobra a sombra, falta o sol ou sobra o sol,
Estamos sempre no erro errado em cada tempo,
Pelo menos é o que dizem os profetas do momento:
Planear tornou-se uma religião falsa de um deus fraco,
Estamos no vagalhão soprado por quem manda mais que o Olimpo.
Ou, antes, o Olimpo é ali aquela duna rasteira e suja.
E, dizes, as pessoas “não conseguem almoçar debaixo de um manifesto”:
Já nem caladas, nem caladas se conseguem ouvir,
Quanto mais fazer-se ouvir, Ah O Manifesto,
E gastaram as forças antigas que guardavam sendo amigas
(palavras gastas, mas poupa-as, que há poucas)
No esforço inglório de pensar que há um rumo.
O que é um rumo? Não é decerto, coisa da física,
Isso é um prumo, é o material e a força da gravidade;
Pensava que um rumo implicava uma certa margem,
Um certo grão, apesar de tudo, de liberdade.
E aqui tu dizes que ninguém dorme debaixo da metafísica.
Nesse caso, deita-te nela. Que as camas não são só para dormir.
Deita-te na metafísica a fazer outras coisas:
Como podemos falar contra construir castelos na areia à beira do mar
Se todas as casas são hoje barracas ao vento
Neste tempo em que até o tempo hesita
E muda inconstante a hora em que te visita.
Se é inútil saber História ou estudar Latim
Porque se perdeu a memória e sobreviver é um frenesim,
E afinal todas as línguas humanas são já línguas mortas
Quando as palavras se fecham como portas;
Como se pode dizer que ninguém dorme debaixo da metafísica?
Se já não há tecto, “não havia casa, não havia nada”,
Quem pensa em dormir? Só uma metafísica desesperada.



(in Porfírio Silva, Monstros Antigos, Esfera do Caos, janeiro de 2014)

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