21 de março de 2019

a revolta das acácias



Esta é a história verdadeira da revolta das acácias.
Tudo à sua volta se movia e elas postas em sossego obrigado,
sem saída de caça nem passeio, sem música ou literatura,
pousadas nessas dunas deste país sem uma palavra terem boca para dizer.
Embora seres sem locomoção, vieram do sul
da Austrália e da Tasmânia pela mão do homem
para ornamento, que não por seu pé,
e para o trabalho de fixar os solos, como um rebanho domesticado,
um quedo escravo colectivo, pois ninguém liga às dores dos vegetais
como não se ouve uma máquina sem seiva.
E um dia, num plano em rede de silêncios
ou combinações apenas múrmures, afinidades
cavadas no inferno dos desprezos
alcançando distâncias maiores do que podia o homem compreender
no seu imprudente esquecimento dos rumores da terra
– um dia começou a revolta das acácias.
Qualquer uma da colónia abriria uma frente de combate
e todas o faziam à custa do seu sangue
enriquecendo os terrenos arenosos com isótopos estáveis de azoto,
criando nos arbustos endémicos de camarinha
e em outros vizinhos vegetais indígenas tão habituados à pobreza
vícios que já os livros da sabedoria condenavam:
o vício de comer quando há e a fome aperta;
o vício de crescer quando a doença não ataca,
no intervalo entre guerra e tempestade;
o vício de provar os prazeres e as promessas
(sejam elas vãs) de felicidade, mero repouso ou companhia.
Conta a história, e a ciência da ecologia, e os sábios com memória,
que assim nasceu e medrou a revolta das acácias:
numa aliança entre a sua força em terra estranha
e a miséria dos locais indiferente ao estigma do estrangeiro,
num abraço entre lágrimas e queixas de estirpes várias
e a saudade da alegria simples das quartas-feiras,
na passagem do desespero à força dos laços quebradiços mas sinceros,
do desespero às nocturnas imaginações de uma ilha distante em lado nenhum.
Porque há sempre um dia próprio do ser que habita a cidade
na mesma cidade que os outros seres do mesmo dia,
esta é mais do que a história verdadeira da revolta das acácias.
Este é um murmúrio vindo de longe aqui.


(in Porfírio Silva, Monstros Antigos Esfera do Caos, janeiro de 2014)
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