21 de março de 2019

A máquina da linguagem

Na fábrica do mundo
as linguagens, como os continentes, derivam e apartam-se.

Uma máquina funciona de certa maneira, produz certos movimentos
dadas as regras construtivas e os muitos cuidados organizados que encarna:
a máquina perfeita é um símbolo do seu efeito.
Esta máquina, contudo, habitava o mundo.
Se é certo que os mais apenas a certas manivelas próximas do piso térreo
[davam uso,
se de todo ousavam tocar-lhe,
já os mercadores rabiscavam sem cessar planos de pormenor
para adaptar o mecanismo às mais subtis mudanças de humor dos forasteiros,
pois os forasteiros espalham as notícias e as notícias convém sejam boas.
Os profetas, esses, raramente
usavam os procedimentos mais procurados para os fins práticos,
antes impunham vastas mudanças de ritmo das componentes principais,
desgastando-as em acelerações bruscas de que poucos escrutinavam a
[ intenção.
Os imperadores podavam a máquina como pomares,
ora um raminho aqui e outro raminho ali, ora cegando os troncos mais viçosos
(sabe-se que a poda orienta o crescimento e apura a produção),
menos à luz de meros caprichos
do que da esclarecida necessidade de poupar o povo a ilusões.
Os estetas, propositadamente, trocavam peças úteis por inúteis
só para calcular o efeito do aleatório no desempenho
– e, a uma máquina que assim até à raiz habita o mundo,
pode uma ou outra das suas peças entortar,
o comportamento real da máquina deforma-se,
certas peças vão ao ponto de partir:
que violência se faz à palavra.

As palavras escolhem o que se semeia e o que se amealha,
nem tudo se pode dizer com estas palavras:
quando em definitivo saíste da casa do pai,
as palavras e as coisas não jogavam umas com as outras,
como se o último copérnico falasse do nascer e do pôr do sol.
Receias justamente:
animais ferozes, inominados, escondem-se na fala organizada
e saltam dos ramos, emboscados, ao mais leve descuido
semeando desordens.

(in Porfírio Silva, Monstros Antigos, Esfera do Caos, janeiro de 2014)

1 comentário:

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