18 de novembro de 2016

Fahrenheit 452 (carta aos novos poetas portugueses)


Fahrenheit 452 (carta aos novos poetas portugueses)

passas a mão pelo pêlo do bicho
e escreves “hirto, o pêlo do bicho”
e confias que eu compreenda:
porque conheço o pêlo, conheço o bicho e conheço “hirto”
já os encontrei em outros dias não olvidados
já usei essas palavras e esse bicho
tudo isso tu esperas

imaginas que por muito pobre que eu seja
hei-de ter visto um bicho algures
afinal, livros com histórias compreensíveis estão à venda nos quiosques
qualquer jornal televisivo encontra cientistas sociais nos seus inquéritos de rua
alma por alma, tens a tua,
imaginas tu nos teus diálogos amorosos comigo, teu leitor;
mesmo os pedintes podem nos cruzamentos ver toda a sorte de fantasias
como se acolitassem o sumo pontífice
em audiência à embaixada que o pitoresco e gastador monarca
enviou com elefantes e onças amestradas
para que se soubesse na cristandade a ventura que era ser rei
deste reino de portugal
e ter assistido à descoberta do caminho marítimo
para ir à índia e à rota do brasil

o que tu não podes saber é de onde conheço eu o bicho
nada suspeitas quanto a que hirto está o meu pêlo
e que o que mais temo é que me toques o dorso
e que o meu receio é a fraca agilidade para morder-te a mão;
transtorna-me que penses sequer no meu abrigo natural
e não penso uma só vez que seja
que isso aconteça apenas na camada de cima do teu poema

se pudesses morder-me, eu compreendia-te
mas tu escreves para que as palavras me façam sentido
para que haja uma palavra tua para cada tijolo do mundo
seja por nomeares as peças da máquina com palavras próprias
seja por podares as palavras sem dono
e isso cria-me o desconforto de sugerir que te compreendo:
parece que me desejas um abrigo
imagino a tua disposição para me acolher
no recanto de onde parte o teu olhar
e isso incomoda-me

se quisesse morder-te, compreendia-te:
mastigar explica muita coisa
mas como queres que a gente se morda num abrigo?
se me expulsasses
se pairassem alienígenas nas nossas salas
se as nossas mães
com armas mirabolantes se apresentassem nos nossos quartos
e os nossos filhos fossem enxertados
em artefactos engenhosos
se os incendiários não usassem tão apenas querosene,
talvez o falecer da compreensão me ajudasse
– mas como queres que valha a pena ouvir o que já está escrito?

Podes até acariciar-me, isso não faz mal algum
porque nada explica;
mas esquecem-se-me os poemas, prefiro as parábolas
fugidias.

(in Monstros Antigos)

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