3 de julho de 2015

ACTAS DA DELEGAÇÃO PADUANA (EXCERTO EUSÉBIO)




I


Quando as televisões espalharam a notícia
da morte de Santo António de Lisboa
e as mais perras das línguas se soltaram
por comoção mais do povo que cardinalícia
vieram primos, afilhados e toda a espécie de parentes
de cada canto da terra,
uns mais gentios, outros mais crentes,
a maioria assim-assim, gentes
de planetas longínquos, santos de outras religiões,
que são planetas ainda mais remotos
dentro das pessoas, vieram paixões,
variados praticantes da meditação, cada um com sua pose,
até um descendente de Fernão Mendes Pinto,
só não vieram adeptos da gnose,
um chinês – minto: um mongol dos antigos,
um mestre de uma ordem militar de um século anacrónico
(Dom Paio Peres Correia, por poucos anos torto neste filme
qual daltónico em fitas a pretos e brancos,
os mesmos que bebiam em suaves solavancos
todo o cálice de absurdo, como se o tempo fosse achatado
entre uma carpideira e um surdo),
e já Nuno Brandão inventava, à pressa, aquela peça
moderna e arrojada, credo, sem teologia nem nada,
de santos antónios em barros de várias cores,
alinhados nas prateleiras do el corte inglés
a fazer a bandeira garrida dos novos amores,
e entrou um peixe dizendo que vinha a recado
do Padre António Vieira, por via de seu testamento,
e que, sendo peixe miúdo, era legado
também dos graúdos e dos que mais devoram,
como se o sermão tivesse convertido alguém,
e estávamos neste clímax de raridades metafísicas,
castigando os poucos cépticos que restavam,
que nestes tumultos as dúvidas ficam sempre tísicas,


II


quando entrou sisudamente
na cidade uma delegação:
do Reino de Pádua mandavam dizer
que os conventos de São Vicente de Fora, em Lisboa,
e de Santa Cruz, em Coimbra, estavam muito atrasados
na pessoal história do santo,
já face à pregação contra os albigenses,
a sua mais espinhosa coroa de glória,
quanto mais comparados com a primavera
do teólogo, do místico, do asceta e do notável orador e taumaturgo
que verdadeiramente Lisboa não sabia quem era
se saber de alguém não é agarrá-lo pelos fundilhos
à porta da morte, a última porta de uma vida séria,
e olhá-lo com os nossos pobres olhos cansados de tanta dor e miséria
que são os olhos que olham sempre primeiro
para os pés do seu próprio dono.


III


Vista a afronta da paduana delegação
– um santo formoso, se o é, afinal, nunca renega o solo natal –
o povo, preclaro, expulsou a representação

hospes hostis
(não sendo para trabalhar a bem da nação,
já Eusébio o ouvira da boca do Professor Salazar,
não há cá Inter nem Milão, você é nosso não é para abalar,
– Santo António teve sorte, foi para Pádua –,
ir enriquecer para o estrangeiro, ora, não lembra ao demo,
não o faça o dinheiro olvidar que Moçambique é Portugal,
a pátria, pantera, a Pátria, o clube, Pantera,
o clube, que é a pátria da segunda circular – eh, mainato!)

o povo, pois claro, guardou em escuras caves seguras
as bandeiras dos visitantes,
«não fossem molhar-se desfraldadas,
nem com gotas! nem por instantes!»
mas rasgou os tratados ecuménicos
e iniciou subscrição para uma estátua
no exacto centro do terreiro do paço, de costas para as águas,
uma estátua que abençoasse os que partiam
à conquista, e travasse o passo, à conta de mágoas,
aos que chegavam ignorando as palavras secretas da irmandade do panteão.


IV

Vou rever o meu testamento vital:
tinha-me esquecido do problema do panteão:
isto ainda acaba mal: também o grego Ulisses ainda hoje ignora
que Joyce, my name is Joyce, James Joyce,
meteu a Odisseia num dia só, mais hora menos hora.
Que é quanto dura a vaidade, a nossa e toda.




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