7 de janeiro de 2021

Decameron

 


Uma e outra vez, a natureza

dentes afiados cravados no nosso cachaço

arranca da habitação

expulsa da cidade e da assembleia

entrega à floresta densa, nebulosa e violenta

legiões de corpos doados ao medo, à disputa, à incerteza

gente abandonada ao vento inclemente 

do deus omnipotente instinto de sobrevivência

onde garras aguçadas são veludo, luvas de baile

mandado. Passados todos estes séculos,

regressamos:

a Florença de que saímos vagueia expatriada,

não tomamos já doses certas diárias de estórias

e, contudo, dez dias de afastamento e delírio

ainda satisfazem o alto conceito de retiro

orquestrado para arrancar lobos ao convívio dos lobos.

A comédia humana não conhece os dantescos degraus

entre o inferno, o purgatório e o céu,

as personagens são inteiramente terrenas

e térreas todas as suas moradas:

como um caminho ignoto na floresta

a peste apaga a ordem e a desordem

sem leis só existe a força

e a diferença na força

e a lei da força,

a fraca figura de uma espada de madeira

quando as de aço ferem:

a fome é tão contagiosa como a peste,

nenhuma se cura com castidade

nem se distrai com a alegria.

Decameron, 

dez dias para um tempo de encruzilhadas 

onde os caminhos se separam

precisamente nos lugares

onde antes se juntaram.


(Janeiro de 2021)


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