Uma e outra vez, a natureza
dentes afiados cravados no nosso cachaço
arranca da habitação
expulsa da cidade e da assembleia
entrega à floresta densa, nebulosa e violenta
legiões de corpos doados ao medo, à disputa, à incerteza
gente abandonada ao vento inclemente
do deus omnipotente instinto de sobrevivência
onde garras aguçadas são veludo, luvas de baile
mandado. Passados todos estes séculos,
regressamos:
a Florença de que saímos vagueia expatriada,
não tomamos já doses certas diárias de estórias
e, contudo, dez dias de afastamento e delírio
ainda satisfazem o alto conceito de retiro
orquestrado para arrancar lobos ao convívio dos lobos.
A comédia humana não conhece os dantescos degraus
entre o inferno, o purgatório e o céu,
as personagens são inteiramente terrenas
e térreas todas as suas moradas:
como um caminho ignoto na floresta
a peste apaga a ordem e a desordem
sem leis só existe a força
e a diferença na força
e a lei da força,
a fraca figura de uma espada de madeira
quando as de aço ferem:
a fome é tão contagiosa como a peste,
nenhuma se cura com castidade
nem se distrai com a alegria.
Decameron,
dez dias para um tempo de encruzilhadas
onde os caminhos se separam
precisamente nos lugares
onde antes se juntaram.
(Janeiro de 2021)
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