9 de abril de 2014

a questão homérica





É quem o autor destes tempos?
Foi o povo unido que escreveu num dia só
a declinação das sombras?
Terá nascido numa assembleia total a razão deste silêncio,
instalado agora no lugar do saneamento básico?
O exército dos novos mudos falando muito
entrou no mundo pela deliberação lenta e ponderada dos contrários,
convergindo energias dissipáveis que correm da foz para a nascente?
Ou haverá, de outro modo, muitos e reservados autores destas dores,
os quais deixaram variadas e incongruentes marcas
no dispositivo dos ferretes, no equilíbrio dos poderes
que giram sempre centrifugamente para uns
sempre centripetamente para outros
e louca e desordenadamente
vistos pelos olhos dos que nunca entraram no paraíso?
Os versos das leis

– sim, há um grão de artista no legislador,
qualquer coisa da poesia obscena e transgénica
do coelho fluorescente de Eduardo Kac –

os versos das leis parecem carregados
de fórmulas orais da tradição,
memórias, vestígios das técnicas de improvisação,
imagens repetidas, interpolações, mantras,
dialectos empastelados numa linguagem artificial
que só encontra sujeito num escriba mítico,
o soberano,
despedaçado,
o soberano despedaçado a escrever poemas
que se perderão no lado errado da caverna.
O problema da cidade, hoje,
é a questão homérica, essa dificuldade
nossa com o autor.



[ilustração: Michaël Borremans, Settled (The Reference), 2007, lápis e guache sobre pape]

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